quarta-feira, janeiro 26, 2005

Para Karla


terça-feira, janeiro 18, 2005

Anestesia
Descoberta do dia

Ele foi amolecendo nos meus braços, como quem pega no sono, e eu acariciava sua cabeça dizendo palavras doces... "meu benzinho, meu benzinho"... ele deitado no colo, a gente ao lado da sala de cirurgia... "está tudo bem, meu benzinho, tudo bem." ele olhava para mim, com aqueles olhos enormes, verdes, quando a última forcinha que tinha era suficiente para olhar, apenas. "tá tudo bem, benzinho... dorme..."
Então percebi que ele já não piscava. Só os dois olhos enormes fixados em mim _não, em algo além de mim, percebi ao me mexer_ e as pupilas dilatadas. Chamei o médico, assustada: doutor, ele não fecha os olhos!
E o médico disse, com aquela calma que assusta a gente:
Não, eles não fecham. Ninguém fecha os olhos.

sábado, janeiro 08, 2005

A convite da Eleuda, escrevi um conto para uma edição especial do Vida & Arte, que reuniu dez escritores cearenses ou ligados ao Ceará. O material foi publicado na véspera do Natal.
Claro que depois disso estou mais metida impossível.

História de um homem mau

A primeira sensação que ele teve ao perceber a própria existência, ao apalpar aquele corpo que surgira tão repentinamente, e que era seu, e que era ele, barriga, braços, rosto _como seria esse rosto?_ a primeira coisa que ele sentiu foi vontade de vomitar. Pois antes da barriga, dos braços, desse rosto, havia visto a sua própria essência, alojada no estômago, verde e espinhosa como todas as verdades: ele era uma pessoa cruel.

Engoliu em seco e olhou ao redor _não havia nada além da branquidão. Cenário, roteiro, conflito, clímax, lição de moral. Nada. Apenas ele, o antagonista, em sua indumentária negra, e sua ânsia estomacal. À espera dos fatos horríveis que por certo cometeria _era esse o seu papel. Iria bater em idosos, atropelar prostitutas, envenenar o melhor amigo? Ou algo ainda pior? Quão pior? Algo abominável? Sentiu o suor escorrer pela testa. Afinal, sabe lá quão doentia podem ser as mentes desses escritores... Definitivamente, não estava pronto para isso. Não seria capaz de cumprir a sina reservada ao vilão da história. Qual a história, ainda não sabia, mas dela já se sentia tão vítima quanto os demais. Ou ainda mais, pois para ele não sobraria um mísero grão de compaixão sobre o prato. Apenas a vergonha, a culpa e o escrutínio da massa ignara que não hesitaria em lhe condenar. Para uivar depois, satisfeita, babando ao ver o castigo.

Mas como poderia evitar, quando as letras começassem a cair como bombas sobre aquele espaço branco e dissessem: "então ele pegou a faca", que uma faca aparecesse misteriosamente em sua mão? E se as palavras continuassem: "em seguida, ele deu três passos" _como impedir que as pernas, autônomas, cumprissem a profecia? Livre arbítrio era um conceito inexistente em literatura. Tentou gritar ao mundo que não era o culpado da crueldade que carregava no estômago, mas a voz ficou presa na garganta.

O autor, incompetente, ainda não havia lembrado de lhe descosturar a boca.

O silêncio não foi ele quem quebrou. Foi o outro, que surgiu a certa distância. Um baque oco, caído sabe lá de onde. Tão repentinamente como ele próprio aparecera. E que ostentava um rosto tão ou ainda mais assustado com o próprio destino. O heroísmo, ao que parece, não era um fardo mais leve.

Estendeu a mão, para ajudá-lo a se levantar, e sentiu que o outro ainda tremia, sob as vestes brancas _assim, caído, não parecia capaz de salvarsequer a si mesmo. O cenário, aos poucos, se formava ao redor de ambos _linhas simples, sugerindo paredes, postes, grades. Acompanhou com o olhar otraço retilínio, que levava ao horizonte a idéia de uma rua e se perguntou, pela última vez, como escapar da violência à qual haviam lhe destinado. Mas o homem mau foi morto antes de seus crimes, por um herói assustado demais para esperar a necessidade de salvar o que quer que fosse.