segunda-feira, dezembro 13, 2004

O castigo de Atlas
ou
(Longa e inútil tentativa de justificar uma asneira em inglês)

Tinha uma música que eu costumava cantar assim:
"sometimes... all my shoulders make me happy..."
Era uma canção do John Denver, uma coisa meio country, inteiramente cafona, e ele aparecia na TV cantando isso num daqueles comerciais de coletâneas bizarras, com reflexos dourados do pôr-do-sol em seus cabelos esvoaçantes, e a qual eu, tosca, cantava num inglês macarrônico.

Mas quer saber? Não importa o ridículo da coisa.

Fiquei constrangida, é claro, quando um ex-namorado me ouviu cantando assim e fez aquela cara de heim?
- Você canta "sometimes all my shoulders make me happy"?
- ...hmm... canto...
- Você já parou para pensar no significado disso? "Às vezes, todos os meus ombros me fazem feliz?"
- ...
- Quantos ombros alguém pode ter?
- ...bem...
- É "sunshine on my shoulders".
- ...
- Pôr do sol nos meus ombros me fazem feliz.
- ...

Mas não me importa o ridículo da coisa.
Não mais.
E minha tosca versão original, no universo bizarro em que vivo internamente, faz muito mais sentido.
"Todos os meus ombros."
Cada par carregando um mundo inteiro.
Vários mundos, bem pesados, povoados via de regra por liliputianos extremamente ranzinzas e reclamões a cada tropeço desta que os carrega. "Ei, grandona, não chacoalhe tanto! Você quer destruir o nosso mundinho? É isso o que você quer?"

São um saco, os liliputianos. E zumbem no seu ouvido. E fazem nhem-nhem-nhem... E reclamam de meus desajeitos...
E bem ou mal, estão cobertos de razão porque, e se eu deixar os mundos deles, que também são os meus, caírem? Por desleixo? Por maldade? Por mero cansaço?
E se eu deixar meus mundos caírem?
E se tudo caísse no chão e espatifasse?

Seria um desastre. Mas mais ainda viria:
Os liliputianos subiriam por todas as minhas pernas e todos os meus tórax e todos os meus ombros para construir sobre eles, rapidinho, um mundo ainda mais pesado, cravejado de catedrais espinhentas, sede legítima da culpa apostólica romana. E diriam amén e eu seguiria meu caminho cíclico ao redor do sol com todos os meus ombros em brasa.

E é claro que o sol, boiando assim, no meio do nada, não se põe. E por isso é tão difícil imaginar às vezes como seria ter o pôr-do-sol sobre os ombros. Há tanto tempo não vejo um crepúsculo. "Sunshine on my shoulders" soa ilógico.

Já a versão tosca faz sentido na hipótese de... quem sabe... algum dia alguma coisa cruzar o meu caminho, eu não sei ainda o quê, talvez o cometa halley, pelo qual eu esperei tanto encostada na janela, quando criança, com os olhões arregalados, e que cruzou escondido o céu (ou fui eu que dormi debruçada sobre o parapeito?)...
Talvez assim, eu na minha sina cíclica, carregando meus mundos... E se esse cometa passasse novamente, sem avisar, me despertando para algo além, mais bonito, mais leve.
E nesse despertar eu espreguiçasse.
E nesse espreguiçar meus mundos caíssem.
E nessa queda eu não me importasse.

Vejo o efeito dominó. Mundo a mundo caindo. Bum-bum-bum. Retumbando no chão, rolando para longe... E eu erguendo os braços, meus vários braços, erguendo meus vários ombros, um mais dolorido que o outro, num espreguiçar infinito. Nesse momento eu acho que meu deus-todo-poderoso-dj tocaria, na trilha do universo bizarro, o hit "sometimes all my shoulders make me happy".