Momento Barbie
Tudo o que você quer ser
4. Como ser naïf
"Como ser naïf" foi a forma mais ou menos sofisticada que eu encontrei de dizer aquilo que, em bom português, seria "como ser ingênua" ou em cearês bem falado, corresponderia a: "Como ser a mais abestada das criaturas".
É um defeito que eu tenho, não nego.
Quando inventei de morar sozinha, eram dois os motivos que faziam minha mãe levar as mãos à cabeça e lutar contra minha empreitada:
- essa minha mania de atravessar a rua olhando pras nuvens
e
- essa outra de acreditar em tudo e em todos
Mas eu era da teoria de que, se você espera o melhor de uma pessoa, como ela pode te oferecer o contrário?
Seja porque eu estava certa, seja porque o meu anjo da guarda é a versão celestial do Muhammad Ali, a cada dia eu tinha a oportunidade de comprovar minha tese.
Pegava carona com estranhos.
Emprestava dinheiro.
Confidenciava segredos.
Andava sozinha à noite.
E sempre dava sorte de encontrar, em minhas imprudências, as melhores pessoas do mundo.
Oito anos fora de casa, sem um arranhão, mordida de cachorro ou história de ladrão para contar.
O que não impede que minha mãe _sempre mãe_ ainda leve as mãos na cabeça, preocupada.
- Mas, minha filha, você não pode acreditar em todo mundo!
E do fundo desse meu estilo naïf, pra não dizer "abestado" de ser, respondo:
Calma aí, mãe, todo mundo, não.
Todo mundo -> não.
Pois se tem uma raça na qual eu aprendi a nunca confiar foi poeta.
Quero Paulo Maluf me dizendo que é honesto
Alexandre Frota dizendo que sabe ler
e Michael Jackson jurando sua masculinidade
que dependendo do nível de atuação deles
_se fizerem o beicinho tremer e a lágrima cintilar no canto do olho_
eu sou até capaz de acreditar.
Mas Cecília? Florbela? Jorge Luís Borges?
Nunca.
Deve ser, sei lá... cansaço.
Cansaço de ler, desde criança, as poesias do meu pai.
Na qual havia, entre outros personagens imaginários, a filha que eu deveria ser.
Uma menina à qual ele se referia com palavras tão doces...
Com um carinho tão comovente...
Mas um carinho que nunca se transformava em um afago na cabeça.
Em um abraço. Um olhar terno.
Um carinho aprisionado no papel.
Por muito tempo, quis acreditar que esse era o jeito que ele encontrava para gostar de mim.
Até perceber que não.
Eram, apenas, versos dodecassilábicos.
Imune à poesia, segui meu caminho.
Andando sozinha, esquecendo minha bolsa por aí, aceitando carona de caras que nunca havia visto antes.
E sempre sã e salva, com direito _ainda_ a um beijo de bom-dia na ponta no nariz.
"Dormiu bem?"
"Hum-hum. Tive um sonho lindo."
"Foi mesmo?"
O segredo, eu sabia, era só não acreditar em nada que fosse rimado.
Mas a vida não é assim mesmo?
De pegar a gente justamente no ponto em que a gente crê que mais se protege?
Pois foi.
Um belo dia, recebi uma poesia.
E outra. Outra. E mais outra.
Quando vi, lá estava eu acreditando em Drummond, Neruda e Andrade.
Recitando cânticos para a Santíssima Trindade
Disposta eu mesma a tentar meus versinhos
Embora soubesse o quanto eram ruizinhos
E mesmo quando a realidade não era amor
Mas ausência, carência
e dias de calor
eu pedia:
Poesia,
dizei uma só palavra e serei salva.
Mas o poeta ficou mudo.
Achou melhor não dizer nada.
Depois, escreveu coisas tão bonitas sobre o próprio silêncio que eu fiquei, novamente, plena de poesia.
E foi preciso que de madrugada,
(nessas rimas bestas da vida:)
eu pra lá de embriagada,
um amigo me sacudisse pelos ombros e brigasse e gritasse comigo que chega, ele não aguentava mais me ver tão ingênua, acreditando em tudo, sofrendo e chorando e ainda acreditando.
Não, na verdade foi preciso mais que um amigo brigando comigo.
Foi preciso que a mesma poesia desfizesse o bem que um dia fez.
Que ele me mandasse outras palavras: ásperas, rudes, agressivas.
Que ele dissesse: "não perca seu tempo comigo".
Para que enfim eu aprendesse no que dá ser naïf, ou ingênua, ou _em bom cearês_ a mais abestada das criaturas.
Um dia, espero, as rimas deixarão de doer.
E voltarão a ser apenas o que sempre foram.
Dodecassílabos.