E para encerrar a viagem do Rio, eu queria apresentar a vocês a dona Jurema.
Rio parte IV
ou
Confete e serpentina
Ainda no elevador, o Gustavo disse assim:
"Agora nós vamos entrar no apartamento de dona Jurema, que foi uma das destaques mais importantes que a Salgueiro já teve, na década de 70. Ela era linda! Lindíssima!
(O Gu, como eu já disse, sabe tudo sobre samba, do nome do porteiro da Vila Isabel ao enredo da Viradouro de 1959. E ele continuou...)
"As fantasias dela eram um luxo. O Leonardo ia pra Nova York, todo ano, só para comprar o pano da fantasia dela!
(O Leo é filho da dona Jurema, e amigo do Gu)
"Eram muito ricos, uma das mais tradicionais famílias da sociedade tijucana!
(Ele toca a campainha)
Mas isso foi antigamente, nos tempos áureos. Hoje..."
Dona Jurema abre a porta.
Beijinho de um lado e do outro, um pouco distante, para não borrar a maquiagem.
Unhas vermelhas, cabelo loiro, brincos grandes.
- Senta, minha filha. - ela diz, apontando o sofá.
O sofá enorme, imenso de fofo, com umas vinte almofadas em cima.
Móveis grandes demais para o apartamento pequenininho.
A cristaleira imensa.
As cadeiras de encosto alto.
A mesa larga.
Resquícios de uma época, quem sabe, em que os salões eram amplos e dona Jurema dançava pelos corredores. Linda. Lindíssima.
- Senta, minha filha. - ela repete.
Dona Jurema gosta de ser obedecida.
Afundo no sofá, soterrada pelas almofadas.
Ela acende o cigarro, reclama de dor nas costas. Ficou o dia todinho passando roupa.
- Vamos, Leonardo César!
- Já vai, mãe!
Gu vem me mostrar um troféu.
- Olha só o troféu da dona Jurema!
Um troféu espelhado, do Salgueiro, o nome de dona Jurema em um plaquinha de metal.
- Ah!... interessante... - exclamo eu, sem saber muito o que dizer.
- Não mente, não! - já vai avisando dona Jurema - nem pense em dizer que é bonito! Essa é a coisa mais cafona que existe.
- Mas... bem... é importante, não é? Uma homenagem...
- Ah, minha filha, é o passado. O passado... - responde minha anfitriã, olhando a fumaça que sobe. - Leonardo César!
Enfim Leonardo chega e lá vamos nós.
Eu, Gu e Evandro atrás, Leo e dona Jurema na frente, rumo ao Complexo do Alemão, onde está a quadra da Imperatriz Leopoldinense.
- Lembro uma vez... - conta dona Jurema, se olhando no espelho - Teu pai ainda era vivo, Leonardo César. A gente veio numa festa e começou um tiroteio. E eu, com o susto, fugi na direção errada, correndo morro acima! Já pensou? A sorte foi que um senhor me parou no meio do caminho e gritou "é pra lá, dona!" e me puxou pra baixo. E eu era bem mais gorda nessa época, quase que descia rolando!
Ela retoca a maquiagem.
É bonita, ainda. Eu acho.
A diva da década de 70 é recebida com todas honrarias pela nobreza leopoldinense.
Cavalheiros que beijam sua mão e pedem passagem:
- Deixem dona Jurema passar!
Ela vai passando e senta na mesa reservada para ela, do lado do palco.
Nós, da ralé, ficamos pra trás mesmo.
Espichando o pescoço, na ponta dos pés, dou um jeitinho de espiar o desfile.
Cada fantasia mais maravilhosa que a outra.
Capas, jóias e brocados.
Ishalá: muito ouro! muito ouro!
Tudo ofusca a vista.
Um luxo só.
Passa a princesinha, de cabelos crespos, inclinando docemente a cabeça para os súditos.
Dona Jurema aplaude e comenta com alguém, muito satisfeita.
Mas no meio daaquela alegria toda, um verso do Chico não quer me largar:
"A gente trabalha o ano inteiro
Por um momento de sonho
Pra fazer a fantasia
De rei ou de pirata ou jardineira
E tudo se acabar na quarta-feira”
Estamos ali, no sopé do morro do Alemão.
Na ribanceira da favela.
Dona Jurema e seu passado.
A menina e sua fantasia.
E eu - tentando descobrir onde foram parar as moedas.
De onde surgiu o coelho branco.
Qual o truque do baralho.
Mas, ouve, quem é você para decidir aqui o que é real e o que é ilusão?
Para dizer que essa menina não é mesmo uma princesa?
Que o pai dela não é um rei?
- Cortem-lhe a cabeça! - dirá a mãe dela, muito zangada.
Pois você pensa que no seu corre-corre em São Paulo a vida é muito mais real?
E que ao escrever escrever escrever, à procura do quê? Dos fatos?
Ah, meu bem, você e os seus jornais.
Pura ilusão.
Dona Jurema e seu passado.
A menina e sua fantasia.
Eu e meus jornais.
Mas eis que no meio das minhas reflexões filosóficas sobre o real e o imaginário tendo como estudo de caso a representação carnavalesca rumo a conclusões importantíssimas, o moço do alto-falante anuncia assim:
- E agora com vocês, senhoras e senhores, ele...
O maravilhoso...
O surpreendente...
O magnífico...
ELIMAR SANTOS!!!!!!!!!!!
E eu não digo, meu povo, que é assim?
Quando eu penso que enfim posso adotar um ar blasé de desilusão, aquela coisa intelectual, introspectiva, meio dia de chuva...
São Pedro faz o que?
Joga o Elimar Santos na minha cabeça!
E lá vem ele com sua roupa de pirata descendo as escadas com confete e serpentina:
"Cidade maravilhosa
Cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa
Coração do meu Brasil!"
E tome chuva de papel picado, baianas dançando, dona Jurema sorrindo e a princesinha batendo palmas e o Elimar mandando beijinho pra galera.
Só eu vou ficar de fora?
Bem doida!
Vamos lá, Elimar! Tesão da minha vida!
Jardim florido de amor e saudade,
Terra que a todos seduz
Que Deus te cubra de felicidade,
Ninho de sonho e de luz
Cante comigo:
Cidade maravilhosa, cheia de encantos mil
Cidade maravilhosa, coração do meu Brasil!!
E assim, com muito confete e serpentina, termina, meus caros amigos, a saga "Amarílis na Cidade Maravilhosa" - mais uma mentira inventada por mim.
Mas se a verdade é inverossímil... o que fazer?
;)
beijos a todos
Ílis
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Making off:
E no carro, voltando da festa, o primeiro comentário de dona Jurema:
- Mas Leonardo, como a Regina tá goooorda!!!!
- Não é, mamãe? A bunda deeeeesse tamanho! E aquela mulher é chata pra caralho.
- Leonardo César! Olha a menina aí atrás.
- Ah, mamãe, mas a Amarílis tem que aprender essas coisas.
- Que educação, Leonardo! Mas a Regina é foda mesmo. E como tá gorda... Puta que pariu!